terça-feira, 14 de setembro de 2010

O que você vai pedir à lua quando anoitecer?


O relógio com seus números luminosos a avisou que era quase às quatro da manhã – ou seria da madrugada? –. Ann estava deitada, não se mexia, não queria se mexer. Não queria pensar, e nem respirar. Mas não conseguia fazer todas as suas vontades. Ela mantinha os olhos abertos vagando pelo quarto, uma luz tênue entrava pela janela deixando alguns móveis mais nítidos. Ann gostava da luz fraca ou até da falta dela. Ann gostava da escuridão. Talvez aprendera a conviver com ela, se sentia confortável com o escuro.  Fitava todo o quarto e ao mesmo tempo nada enxergava. Olhava sem nada ver, fitava o nada.
Seus pensamentos estavam confusos, algo que já havia se tornado habitual. Fleches e imagens dos últimos sonhos penetravam e dominavam seus pensamentos. A confusão aumentava quando ela tentava se lembrar o que havia vivido nos dias anteriores. As lembranças eram desconexas, misturavam-se com as imagens dos sonhos, e as poucas certezas deixavam de ser certezas. Ela não queria pensar, queria afastar todas as imagens, fleches e frases de seus pensamentos. Queria. Não conseguia.
Sentou-se na cama retirando a grossa coberta que a impedia de sentir a brisa fria daquela madrugada. Colocando os pés descalços no chão sentiu um calafrio percorrer todo o seu corpo cansado. Pegou um pequeno e familiar caderno na mesinha ao lado da cama, deu alguns passos vacilantes em direção a janela. Sem saber o porquê do que estava fazendo, por um instinto desconhecido, abriu a grande janela que deixava pequenos e fracos feixes de luz penetrar o quarto. Um vento gélido adentrou e dominou totalmente o pequeno ambiente mal-ilumidado. Ann sentia o frio, seus pêlos estavam eriçados, mas não se incomodava, de certo modo sentia que o frio a entendia, e que era uma boa companhia. Passada a primeira sensação por abrir a janela, debruçou-se no parapeito para conseguir melhor fitar o céu.
O céu naquela madrugada era iluminado pela solitária lua minguante de abril. Não havia estrelas naquele céu. Ela fitou a lua por mais alguns longos instantes. Ainda tinha o caderno familiar nas mãos, abrindo-o na última página rabiscada encontrou uma anotação e a leu em voz audível:
– A felicidade é traiçoeira, nos faz acreditar em um sentimento pleno, um bem-estar absoluto que pode até ser eterno. Mas quando menos esperamos – as coisas acontecem sempre quando não esperamos, pensou Ann, depois continuou – Mas quando menos esperamos, ela vai embora, deixando apenas o vazio que logo é ocupado pela completa tristeza.
A cada palavra lida à luz da lua por aquela voz fraca e rouca, aumentava a força das lágrimas que se formavam em seus olhos pouco brilhosos. Mas nenhuma das lágrimas ousou escorrer e quebrar a secura daquele rosto. No entanto, a sensação de vazio sendo ocupado, devastado pela tristeza incomum era mais ousada: a dominava, e a cada minuto ganhava mais força e intensidade.
O vazio não era ruim, o vazio era confortável. A tristeza também não era de todo mal, ela só precisava se acostumar com o furto do vazio, Ann só precisava aprender a lidar com aquela nova tristeza. Quantas e quantas vezes ela já havia se sentido assim? Ela já havia criado uma cumplicidade com a dor, com a tristeza, com o vazio e com a solidão – os seus preferidos –. Mas desta vez a felicidade havia lhe furtado toda a força... Desta vez a felicidade havia sido ainda mais devastadora e cruel.
Fitando com os olhos tristonhos a lua, Ann lembrou-se de uma conversa de meses atrás. Mordeu os lábios desejando veemente um cigarro, mas havia fumado o último cigarro há mais de três dias, talvez ela quisesse querer parar de fumar. Só queria.  
– Lua, um dia me perguntaram o que eu ia... – começou a falar com sua voz fraca e rouca – o que eu iria pedir para você quando anoitecesse, eu fui surpreendida com tal pergunta, mas eu gostei. Não sabia o que pedir, pensei muito naquela noite e pedi coisas boas para quem havia me feito tal pergunta e para mim, também. Depois daquela noite eu segui te agradecendo todas as noites, ao menos as que me lembrava. Mas hoje, hoje mais do que nunca eu preciso lhe fazer um pedido com toda minha humildade e admiração por você. Ajude-me, Lua. Ajude-me a lidar com essa dor, com esse sentimento.  – Sua voz ia enfraquecendo. – Não peço a felicidade, ela não me faz bem, não faz bem a ninguém. Peço apenas o vazio, a solidão. Ajude-me, Lua.
Os minutos passavam nem lentamente nem rapidamente, apenas passavam. E Ann ainda debruçada no parapeito da janela, não se mexia, apenas respirava e fitava a lua. O reflexo da lua em seus olhos era o único brilho que havia neles.
Amanhecia.
Viu o azul turvo da noite-madrugada se clarear e a amarelada luz do sol fazer o dia. O nascer do sol foi belíssimo, ela admitiu, mas não ficou ali para ver o espetáculo. Ann fechou a janela, ainda doía e ela sabia que iria doer ainda mais. Mas ela sabia que agora tinha uma companhia durante as noites. Um ponto de paz onde podia encontrar um pouco de força para aprender a lidar com aquela dor. E até um pouco de brilho no olhar

Nenhum comentário:

Postar um comentário