Parceiro, ei! Você tem um calendário? Não, não deste maldito ano. De anos passados, de anos que foram menos doloridos e até belos, ou. Ou de anos futuros, anos que não vieram, que não devastaram, que não trouxeram mágoas, nem saudades, só uma esperança, talvez doce talvez sem gosto ou com gosto apenas de esperança – um gosto que eu não mais conheço, o gosto que se perdeu de mim.
E então, você tem um calendário com gosto de esperança? É essa a minha pedida de hoje. Mas claro que você pode trazer mais uma dose daquela vodca nacional. Dupla. Pura. Ao som do poeta Renato Russo, grande. Morreu cedo. Mas o que eu daria para poder curtir um show dele, deles. Poderia morrer ao final do último acorde, saberia que minha vida teria sido bem vivida. Ou apenas vivida!
Não, parceiro, eu não deveria ir para casa, eu não bebi demais. Estou sóbrio, infelizmente. Parceiro? Ora, agora essa. Parceiro sem nenhuma cumplicidade, sem parceria. Mas continuarei lhe chamando assim: parceiro. Deixe ilidir-me ao pensar que tenho um parceiro, mesmo sendo o garçom do botequim de quinta que passo todas as minhas noites e madrugadas.
Noite após noite embriagado e sempre por essa maldita vodca nacional, nem mais efeito faz. Sempre com esse cheiro de homem com pêlos úmidos de suor, o cheiro dessa vodca impregnado em minha pele junto com o cigarro, todos os vinte que fumo diariamente, quando não fumo mais e mais.
“e pro inferno ele foi pela primeira vez”.
E foi a segunda a terceira e noite após noite. Todas as noites eu vou para o inferno, não me lembro qual foi a primeira, talvez nem houve a segunda vez. Em algum momento eu já saí do inferno, parceiro? Você conhece alguém que já foi ao inferno e conseguiu sair de lá?
Eu preciso de outro maço de cigarros, o terceiro de hoje se não estou contando errado, mas em matemática eu sempre fui um excelente aluno, não erraria contas de adição. Ou erraria? O tempo passou, já nem sei quanto tempo faz que troquei as manhãs na escola pelas noites neste botequim de quinta. Você se lembra? Você se lembra da minha primeira vez aqui? Ah. Minha memória tem me enganado, me fazendo acreditar em coisas que talvez nunca aconteceram, talvez foram apenas sonhos. Mas eu me lembro de algo, foi em uma noite depois de terminar um trabalho escolar na casa dele. Ele quis me mostrar um lugar, disse que desestressava, e aquele trabalho tinha nos deixado completamente estressados e cansados. Ele me trouxe aqui, pediu duas doses dessa mesma maldita vodca nacional. Dupla. Pura. Acendemos cada um o seu cigarro, naquela época eu já fumava, ainda pouco. Fumamos, bebemos, rimos, ouvimos os poetas de décadas passadas, conversamos, nos declaramos.
Foi isso mesmo que aconteceu, parceiro? Você nos atendeu naquela noite. Duvidou que agüentássemos mais que três doses. Mas ainda estou na dúvida, nos declaramos naquela noite? Sei que amanhecemos aqui, e fomos direto apresentar o trabalho que havia nos trazido até aqui. Não conseguimos falar nenhuma frase coerente, eu não estou falando nada coerente. Mas não me mande calar nem ir embora, e não me negue mais uma dose. Ainda estou sóbrio. A cada dose fico mais sóbrio! Você tem café? Bem forte e amargo? Talvez o café me deixe insano, roube minha sanidade. Talvez.
Ele! Nem o seu nome eu me lembro. Não me lembro das feições, do sorriso, do jeito, só me lembro da voz: rouca e manhosa. E do cheiro: cheiro de homem com pêlos suados e a vodca, essa mesma vodca nacional e maldita, impregnada em sua pele e pêlos junto com o cheiro de todos aqueles cigarros, todas aquelas noites, todo aquele gozo. Às vezes sinto o cheiro dele em mim, mas falta o gozo, o cheiro dos espermatozóides dele misturados com os meus.
Saudades. Lembranças. Embriaguez.
E eu quero ficar mais embriagado com minha sanidade, com essa vodca maldita de quinta. Mas dessa vez no meu quarto, longe da luz do sol que daqui a pouco invadirá a cidade. Até a próxima madrugada, parceiro. Se a luz não me sucumbir.
Fui clicando por aí e, às tantas, dei por mim neste espaço. Gostei da escrita e vou seguir. Com todo o gosto.
ResponderExcluirBj