sábado, 6 de novembro de 2010

Tumor

Faço parte daquele grupo de pessoas que antes mesmo de tentar já desistiu. Que perdeu as força, não busca mais esperanças. Não há forças. Não há esperanças.
Comodismo. Covardia. Medo. Lembranças.
O passado assombra durante toda a madrugada com o nome de insônia, e quando a insônia dá uma trégua, é hora dos sonhos atormentarem, tornando ainda mais vivas as lembranças. O passado deseja um melancólico dia assim que o sol raia nas manhãs de todos os dias.
É amargo.
Eu já conhecia este gosto antes, muito antes do meu último suspiro da minha última vida. Já conheci vários gostos. Doces. Salgados. Agridoces. Azedos. Estragados. Amargos. Entre muitos outros. Todos eles em intensidades distintas. Em algumas vezes, sentia mais de um sabor. Todos os sentimentos têm gosto, cheiros, consistências, formas. Os sentimentos afetam os nossos seis sentidos: olfato, paladar, tato, audição, visão e alma. Creio que não possuímos apenas estes seis sentidos, mas não sei descrever os outros que acredito existirem. Não sei descrever nada, nem sei por que tento. Lá vai eu desistir novamente.
Desistir virou vício, fuga, caminho – talvez – mais fácil. Descobri que tenho um tumor, um tumor sem cura, incontrolável. O tumor cresce! Todos têm este tumor. Não sei seu nome e não quero  descobrir nada a seu respeito, o que eu mais temia saber: já sei: é maligno. Vou morrer, todos vamos, mas se afaste de mim. Poupe dor. Já perdi tantas vidas com ele, já vivi tantas vidas com o lado benigno dele. Mas o passado precisa deixar de importar. Não vou sobreviver a este tumor. Um dia eu quis descobrir uma maneira de não precisar mais viver com ele, nem com o lado benigno nem com o maligno. Mas nascemos com ele, e em algum ponto ele cresce... e quando já não tem mais controle, ele se revela maligno ou benigno. Hoje não quero mais saber nada, deixe-me respirar e sentir meu músculo cardíaco pulsar no silêncio da minh’alma. Santos movimentos desnecessários...
Deixe-me só. Não perturbe o amargo silêncio.  

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

2ois

Para Trevor; M.
“Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.”
Por Pablo Neruda


– Eu não te amo apenas. Desejo-te. Preciso-te. Assim, bem perto. Mais perto. Colados. Nós dois tão próximo que perdemos os limites de onde termina um e começa o outro, não há limites somos apenas um.
Dois em um. Pele úmida com pele úmida, pêlos com pêlos. Peitos e seios tão unidos que um pode sentir o coração do outro. Disparado. Disparados, os dois corações daqueles dois seres que são apenas um, pulsam juntos.
Línguas se chocam, dançam, brigam, brincam. Gostos de misturam. Unhas causam arrepios incontroláveis. O desejo está na pele, no suor, nos lábios, nos olhos, nos gestos. O amor está na pele, no suor, nos lábios, nos olhos, nos gestos.
Um desejo puro. Um amor sincero. Uma necessidade honesta.
– Cúmplices! Somos cúmplices de um crime inafiançável. Prisão perpetua é a nossa pena: condenados a morrer de amor, morrer juntos.
– E no amor: eternos seremos.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Vodca de quinta

Parceiro, ei! Você tem um calendário? Não, não deste maldito ano. De anos passados, de anos que foram menos doloridos e até belos, ou. Ou de anos futuros, anos que não vieram, que não devastaram, que não trouxeram mágoas, nem saudades, só uma esperança, talvez doce talvez sem gosto ou com gosto apenas de esperança – um gosto que eu não mais conheço, o gosto que se perdeu de mim.
E então, você tem um calendário com gosto de esperança? É essa a minha pedida de hoje. Mas claro que você pode trazer mais uma dose daquela vodca nacional. Dupla. Pura. Ao som do poeta Renato Russo, grande. Morreu cedo. Mas o que eu daria para poder curtir um show dele, deles. Poderia morrer ao final do último acorde, saberia que minha vida teria sido bem vivida. Ou apenas vivida!
Não, parceiro, eu não deveria ir para casa, eu não bebi demais. Estou sóbrio, infelizmente.  Parceiro? Ora, agora essa. Parceiro sem nenhuma cumplicidade, sem parceria. Mas continuarei lhe chamando assim: parceiro. Deixe ilidir-me ao pensar que tenho um parceiro, mesmo sendo o garçom do botequim de quinta que passo todas as minhas noites e madrugadas.
Noite após noite embriagado e sempre por essa maldita vodca nacional, nem mais efeito faz. Sempre com esse cheiro de homem com pêlos úmidos de suor, o cheiro dessa vodca impregnado em minha pele junto com o cigarro, todos os vinte que fumo diariamente, quando não fumo mais e mais.

“e pro inferno ele foi pela primeira vez”.

 E foi a segunda a terceira e noite após noite. Todas as noites eu vou para o inferno, não me lembro qual foi a primeira, talvez nem houve a segunda vez. Em algum momento eu já saí do inferno, parceiro? Você conhece alguém que já foi ao inferno e conseguiu sair de lá?
Eu preciso de outro maço de cigarros, o terceiro de hoje se não estou contando errado, mas em matemática eu sempre fui um excelente aluno, não erraria contas de adição. Ou erraria? O tempo passou, já nem sei quanto tempo faz que troquei as manhãs na escola pelas noites neste botequim de quinta. Você se lembra? Você se lembra da minha primeira vez aqui? Ah. Minha memória tem me enganado, me fazendo acreditar em coisas que talvez nunca aconteceram, talvez foram apenas sonhos. Mas eu me lembro de algo, foi em uma noite depois de terminar um trabalho escolar na casa dele. Ele quis me mostrar um lugar, disse que desestressava, e aquele trabalho tinha nos deixado completamente estressados e cansados. Ele me trouxe aqui, pediu duas doses dessa mesma maldita vodca nacional. Dupla. Pura. Acendemos cada um o seu cigarro, naquela época eu já fumava, ainda pouco. Fumamos, bebemos, rimos, ouvimos os poetas de décadas passadas, conversamos, nos declaramos.
Foi isso mesmo que aconteceu, parceiro? Você nos atendeu naquela noite. Duvidou que agüentássemos mais que três doses. Mas ainda estou na dúvida, nos declaramos naquela noite? Sei que amanhecemos aqui, e fomos direto apresentar o trabalho que havia nos trazido até aqui. Não conseguimos falar nenhuma frase coerente, eu não estou falando nada coerente. Mas não me mande calar nem ir embora, e não me negue mais uma dose. Ainda estou sóbrio. A cada dose fico mais sóbrio! Você tem café? Bem forte e amargo? Talvez o café me deixe insano, roube minha sanidade. Talvez.
Ele! Nem o seu nome eu me lembro. Não me lembro das feições, do sorriso, do jeito, só me lembro da voz: rouca e manhosa. E do cheiro: cheiro de homem com pêlos suados e a vodca, essa mesma vodca nacional e maldita, impregnada em sua pele e pêlos junto com o cheiro de todos aqueles cigarros, todas aquelas noites, todo aquele gozo. Às vezes sinto o cheiro dele em mim, mas falta o gozo, o cheiro dos espermatozóides dele misturados com os meus.
Saudades. Lembranças. Embriaguez.
E eu quero ficar mais embriagado com minha sanidade, com essa vodca maldita de quinta. Mas dessa vez no meu quarto, longe da luz do sol que daqui a pouco invadirá a cidade. Até a próxima madrugada, parceiro. Se a luz não me sucumbir. 

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Desejo a ti belos dias

Tenho visto lindos dias, são tão belos que vezenquando penso estar vivendo dias belos também, penso estar vivendo os mesmo lindos dias que vejo. Doce ilusão. Utopia que é logo quebrada: coloco a mão no bolso da calça, tateando até esbarrar no celular, o gesto é tão comum que chega a ser impensado, mas ao triscar no celular afasto imediatamente a mão, como se uma descarga elétrica tivesse atingido o celular e ele estivesse dando fortes choques-elétricos, choques-de-realidade. E o tal choque varre a utopia: não posso te ligar, nem uma mensagem, nem um “bom dia”. Não mais. Já ousei demais, mandei-lhe um e-mail com poucas palavras em um ato desesperado, não houve resposta, eu estava consciente que a resposta não viria. Mas ainda checo minha caixa de entrada duas ou três vezes ao dia, outro ato de desespero. E entupo minha caixa de rascunho com e-mails que deveriam ser enviados a ti, em mais outro ato de desespero. Ando desesperada, desnorteada...
Lembro do dia lindo, mas não ouso pensar que posso, quem sabe por um milagre, estar vivendo um lindo dia. Estou olhando por uma grande janela, sim é isso. Eu assisto aos dias, um por um, através de uma grande janela, mas é gradeada e pelas grades passam uma forte corrente elétrica – talvez, por isso que levei o choque ao pegar no celular, ou porque eu estava querendo invadir um lugar que não me pertence, levei o choque e foi merecido. Os dias belos não me pertencem ou eu não pertenço a eles. Não nos pertencemos, essa é a verdade.
Mas volto a pensar, sem mais a doce amarga-ilusão ou utopia, o quão eu queria poder completar aquele ato de pegar o celular, discar seu numero que sei de cor, salteado e de trás para frente, esperar tocar duas-três-quatro vezes e ouvir uma voz mansa e sonolenta – pois você só acorda depois das dez e eu antes das seis, mas pouco importa a hora do dia: sua voz é sempre mansa e sonolenta, o calmante ideal para meus devaneios.  Sei que ao ouvir seu suspiro, você sempre atente aos telefonemas, ao menos aos meus, com um suspiro que de súbito acelera meus batimentos e logo depois os acalmam, é tão gostoso a disritmia cardíaca que você me causa. Você começa a conversa, sem formalidade, talvez um ‘bom dia, boa tarde, boa noite’, mas creio que será com um comentário: sobre o que sonhou na última noite, sobre algo que viu/ouviu/sentiu e que queria compartilhar comigo – como eu: eu queria lhe dizer como o dia estava lindo, como eu queria poder viver este dia contigo. Mas você às vezes fala mais, quando está empolgado com alguma coisa faz poucas pausas para ouvir meus comentários, mas creio que eu iria falar mais, afinal tinha um belíssimo dia para descrever minuciosamente a você. Você pediria uma foto, faria perguntas interessado, faria comentários e me faria sentir-me completa e não apenas observando o dia, mas talvez, o vivendo mesmo que a margem. Posso ouvir sua voz sussurrando em meu ouvido, a saudade se apossa de mim ainda mais, como se houvesse maneira de sentir mais saudade que eu estava sentindo. Tais pensamentos enchem meus olhos d’água, as lágrimas salgadas-e-ácidas voltam a queimar meus olhos opacos e moldados em pesadas olheiras.
Fito o Céu, fito o dia por um longo tempo, estou sem pressa, não me preocupo com as horas, afinal horas são apenas a medição do tempo e o tempo que eu tenho tem sido apenas o relógio m dizendo que as horas têm passado, cada vez mais devagar e eu fico apenas divagando. E desejo, com toda a força que tenho, que você possa estar vivendo este dia lindo e que em algum momento eu esbarre em uma janela que me permita ver você, te observar através das grades de realidade-elétrica, apenas observar e ter mais uma doce ilusão que você, inconscientemente, desejasse que eu estivesse tendo um bom dia, também. Ou ao menos, iludir-me pensando que você vez em outra, em pouquíssimos instantes durante seus dias ou noites, em devaneios ou em sonho, pensa em mim e que um dia, mesmo que demore, vai fazer meu celular tocar novamente e meus batimentos adquirirem um novo ritmo.
E as horas continuam a passar, vezenquando arrastando-se preguiçosamente e vez em outra ligeiras, apressadas. E eu vou divagando como a fumaça dos cigarros que trago, observando através das janelas gradeadas os dias, lindos ou não.